CAPÍTULO DEZENOVE
Domingo, dia de Globo Rural.
Diante da telinha, o casal de semeadores acompanha as notícias do
campo. Embevecidos, admiram paisagens e se encantam com as áreas
ainda preservadas. Enchem-se de entusiasmo com o perfeito tratamento
das terras para o plantio sem agrotóxicos. Entristecem-se com os
animais aprisionados, para ser sacrificados.
As imagens surgem e as notícias correm. Eles comentam os fatos,
criticam as atitudes dos homens e sonham com o emprego de novas ações
ambientais. Eles não se conformam com os métodos cruéis de lidar
com a terra e com os animais.
Eles têm a consciência plena de seus papéis de provocar
mudanças, gerar novos comportamentos e transformar antigos
paradigmas. E sofrem, quando se sentem impotentes para evitar tanto
desperdício, agressões, ignorância e pobreza. Eles lamentam
perceber o quanto a humanidade perdeu o rumo do verdadeiro progresso.
As cenas se sucedem na tela, surgem notícias das misérias do
campo, das injustiças sociais contra os camponeses e dos protestos
dos agricultores reclamando da dificuldade para a liberação da
verba para plantio.
Falta dinheiro, a cotação do produto está em baixa, houve
quebra de produção de certo produto lá fora, e por isto o seu
preço interno cresce. Então, surge o alerta, é hora de plantá-lo.
Mas, se houver uma supersafra, o preço vai baixar. Se isto ocorrer,
não haverá uma saída, o produtor já se endividou. E novos
problemas serão enfrentados. Como evitar essa roleta rural, que gira
a cada ano, à espera de novas apostas.
É o cassino rural, onde a terra é a roleta, a semente é a
bolinha que desliza sobre os números, que são as vontades da Mãe
Natureza. As fichas são os recursos tomados como empréstimo, o
Estado é o banqueiro e os agricultores, eternos jogadores.
O resultado desta sacrílega jogatina, jogada sobre o pano verde
da sagrada terra, é o permanente caos, em que até mesmo o
banqueiro, que em outras atividades sempre sai ganhando, aqui, pode
sair perdendo.
Helga se volta para Gibran e afirma com indisfarçável revolta –
“é tudo por causa da ambição”. Ele balança a cabeça
concordando, e completando – “se cada qual plantasse com seus
próprios recursos, se levassem em conta os naturais riscos das
variações climáticas, as perdas seriam mínimas e os prejuízos
irrisórios”.
As maiores perdas são dos que mais arriscaram. Quando ganham, não
questionam o processo. Quando perdem, atacam as regras do jogo,
buscando responsáveis e se negando a pagar as contas.
O diálogo dos dois prossegue, à medida que as imagens se
alternam e as notícias se repetem. É tudo previsível, todo ano é
a mesma lenga-lenga. Quem perdeu grita e quem ganhou se cala. Virá um
ano em que as posições se invertem e as atitudes se repetem.
Helga não se conforma e afirma que está tudo errado. Gibran
balança afirmativamente a cabeça. Ela protesta e ele reflete
calado. Em sua mente, surge a pergunta: “Por que o Estado deve
arcar com os prejuízos, se quando acontecem lucros, os dividendos não
são rateados com os contribuintes”?
Na cabeça de Gibran não tem sentido o Governo ajudar quem perdeu
no jogo agrícola. Quando se entra num jogo ou se ganha ou se perde.
E, afinal de contas, cobrar ajuda do Governo é o mesmo que pedir
ajuda ao povo, que é o legítimo dono do cassino. Por sinal, um dono
que sempre perde, nas mãos do administrador e dos jogadores.
Nos tempos de fartura, os jogadores correm para o mercado em busca
do lucro máximo. Nas épocas de quebras, o protesto e a busca de
vítimas que aceitem assumir as perdas. Como o Governo jamais assume
a condição de vítima, o prejuízo sobra para o contribuinte.
Gibran e Helga ficam indignados com este processo absurdo, que
leva o caos ao campo, sem sinal de solução. Basta uma geada no Sul,
uma seca no Nordeste ou enchentes no Sudeste, e todo o ciclo de
perdas, quebras de safra e ameaça de falências se repetem. E nem
uma vivalma tem a coragem de se insurgir contra essas máquinas que
lucram com o fracasso alheio.
Os “com-terras” reclamam da falta de recursos para plantar, os
“sem-terras”, da falta de terra para plantar. Uns a têm e não
sabem o que fazer com ela; outros sonham em tê-la, sem imaginar o
pesadelo de vir a entregá-la para os bancos credores.
O homem nunca mais soube conviver com a natureza, depois que
abandonou a vida na floresta e se fixou nas cidades. Ele briga com os
fenômenos naturais, tentando subverter o clima e as estações.
Desviam rios, aterram lagoas e invadem praias, imaginando-se
impunes ao alterar a relação terra-água. Mexer nesses espaços é
o mesmo que alterar o metabolismo do corpo planetário. Depois não
adianta enfrentar as inundações ou estiagens com lamentos e
acusações.
A chuva, o calor, o frio, o vento, a geada, são reações
instintivas do corpo do planeta, semelhantes ao choro, o riso, o
amor, o rancor, a frieza, do corpo humano. O homem precisa entender a
natureza para interagir com ela, e não enfrentá-la com o intuito de
transformá-la ao seu bel prazer.
Como imaginar que poluindo a terra se possa receber em troca
fertilidade e produtividade! A humanidade apagou da memória que tudo
tem vida, mesmo os objetos inanimados. Uma árvore, uma pedra, um
punhado de terra, um caneco com água, tudo está vivo.
E o que dizer dos animais, o reino mais próximo do homem? Salvo
raríssimas exceções, quando o homem se deixa ser o melhor amigo do
seu bichinho de estimação, no mais, ele trata a todos com rara
crueldade.
As criações, as granjas, os animais confinados para satisfazer o
paladar humano. E o que dizer das engordas exageradas, das práticas
desumanas de afastar os filhotes das mães e de manter aves despertas
com o uso de iluminação artificial?
Até quando a raça humana continuará insistindo com essa
presunçosa teoria de que tudo que existe no planeta foi criado
somente para servi-lo ou satisfazer o seu apetite. Ou, melhor seria,
simplificando a questão, quando se amará ao próximo como a si
mesmo?
Mas, quem é o meu próximo, Senhor? Os meus pais, meus parentes,
filhos e filhas, marido e esposa? Não somente os irmãos humanos, e
todos, não só os mais próximos, mas também o animal preso no
curral, a planta confinada no seu jardim, a pedra solta no leito do
rio, as aves que voam sobre suas cabeças.
Tudo isto se passa na mente do nosso casal, diante da televisão.
Já não falam mais, só pensam. Os dois se arriscam a trocar algumas
palavras sobre o tempo que está por vir. O caçador e a sua caça
repousarão juntos, às margens do rio da vida.
Eles visualizam os campos plantados, cercados por bosques
preservados. Eles sabem que, dias virão em que o homem não mais
matará para comer, retirando seus alimentos da terra, e só da
terra, fartos e puros.
Os homens viverão em plena harmonia com os demais reinos da
natureza, num encadeamento ecológico perfeito, um servindo o outro.
Nada de violências, guerras ou destruições.
O êxodo das cidades de volta aos campos, construindo-se belas
agrovilas, está mais próximo do que se possa imaginar. Na cidade ou
no campo, as fábricas anularão seus focos poluidores. O homem terá
de aprender a respeitar o homem, antes de assumir a nova consciência
de conviver em paz com os seres de outros reinos.
Antes de desligar a televisão, surgiu um estimulante alento, com
uma reportagem sobre uma comunidade, localizada em Santa Catarina,
numa rota chamada Estrada Bonita. As pessoas viviam do artesanato e
de produtos caseiros que eram ofertados aos turistas, atraídos pela
beleza da região. Além das compras, os visitantes podiam conviver
com o estilo de vida dos moradores, visitando suas casas e
participando da produção artesanal de tudo que era posto a venda.
– É isto, este é o caminho para o amanhã, exclamou Helga.
Cada qual produzindo o que sabe, e em suas próprias casas. Casas em
regiões preservadas, onde as matas nativas são respeitadas e
cultuadas como nossas fontes de vida.
Os compradores serão os viajantes que, enquanto passeiam e se
divertem, entram em contato direto com a vida simples dos artesãos,
adquirindo produtos puros, sem química ou aditivos artificiais.
Ele, sonhando com as agrovilas. Ela, vislumbrando a estrada
bonita, que liga o sonho à realidade. Eles, semeando ideias,
plantando as civilizações do futuro e estabelecendo as premissas do
amanhã. O saco de sementes, aos poucos, estava ficando vazio.
CAPÍTULO VINTE
Com o passar do tempo, o nosso casal ia ficando conhecido na sua
comunidade. Suas ideias diferentes e seus hábitos pouco comuns
tornavam-se motivo de curiosidade para grande parte da vizinhança.
Os seus relacionamentos foram se estendendo, incluindo
fazendeiros, médicos, professores, políticos e considerável número
de comerciantes. Com todos, eles mantinham a mesma atitude, semeando
conceitos criativos e simples.
Muitos dos seus vizinhos, pessoas desconfiadas e supersticiosas,
julgavam-nos magos e seguidores de alguma seita misteriosa. Os mais
próximos reconheciam neles princípios cristãos e atitudes
humanitárias. Os mais perspicazes sabiam que eles cultuavam crenças
baseadas em poderes ocultos de uma espiritualidade sagrada, mas sem
religião.
Eles possuíam intensos poderes que dominavam as energias em todos
os ambientes, graças às suas forças mentais. Eles pregavam o
controle sobre ações e reações mediante o uso da vontade e do
poder mental.
A vida seguia em frente, e o nosso casal de semeadores não perdia
o passo, acelerando quando necessário, e reduzindo a marcha na hora
de refrear certos impulsos inovadores, deixando o tempo fluir.
O tempo passava, e, a cada dia, eles eram mais conhecidos e
respeitados. As visitas vinham em busca de conselhos sobre como se
relacionar com a natureza ou lidar com doenças por meio de curas
naturais. Alguns desejavam consultá-los sobre os métodos mais
criativos para ensinar e prender a atenção das crianças.
Em meio a tantos visitantes, apareciam os curiosos em busca de
conselhos sobre suas vidas, seus problemas e frustrações. Nenhum
saía sem uma palavra amiga de estímulo, esperança ou conciliação.
A paz e o amor eram ensinados, em todas as situações. Assim, aos
poucos, a comunidade se tornou pacífica e participativa.
O bairro onde moravam, um dos mais carentes da cidade, foi se
modificando e chamando a atenção das autoridades, pelas novas
posturas do povo. A escola passou a adotar seus métodos pioneiros e
criativos. O posto de saúde do bairro tornou-se o mais dinâmico e
eficiente. Até mesmo, os políticos do bairro passaram a se destacar
nas sessões da Câmara.
Pouco a pouco, o nosso casal passou a ter livre acesso às
instituições locais, chamado para dar palestras sobre os mais
variados temas. Escolas, associações de moradores e fundações de
apoio às crianças eram os principais locais de suas apresentações.
A escola do bairro realizou um seminário sobre a influência das
relações familiares no aproveitamento escolar dos alunos. O nosso
semeador foi o principal orador, abordando a necessidade de
conscientizar os pais dos alunos sobre a metodologia aplicada na
escola.
Tempos depois, inspirado pelo sucesso da palestra na escola,
ocorreu outro seminário sobre a medicina preventiva e os modernos
métodos alternativos para se evitar doenças. O sucesso repercutiu
de tal forma que mudou a postura da Secretaria de Saúde.
O próximo passo veio a ocorrer na associação de moradores, que
programou um fórum de debates sobre a inclusão do trabalho de toda
a família, na formação da renda familiar. A ideia parecia
simplória, mas mexeu com a cabeça do povo. A sugestão de preparar
a família para a execução de um trabalho conjunto, em que todos se
dedicariam a tarefas diferentes buscando um objetivo comum.
Aproveitando o sucesso da série de palestras proferidas por
Gibran, a creche municipal convidou Helga para dar uma série de
palestras sobre os cuidados com a natureza e a importância da
preservação de florestas e bosques. Sucesso absoluto! Novos
convites e um sem números de oportunidades para levar os conceitos
ambientais adiante.
O nosso casal, com tantos convites, vivia ocupado entre salas de
reuniões e atividades na terra, entre o discurso criativo e o
plantio de mudas de árvores, entre a semeadura e a colheita. Era
preciso plantar, sem se descuidar da colheita. Uma e outra tinham de
caminhar juntas, para evitar desperdícios.
Muitos semeavam, e o orgulho com o feito fazia com que se
esquecessem da época da colheita. Outros até que colhiam bons
frutos, mas, a euforia com a boa colheita fazia-os esquecerem da nova
semeadura. E, assim, a continuidade do trabalho se perdia.
Gibran e Helga sabiam que a humanidade vivia um momento de rara
energia, quando tudo deveria ser aproveitado e os maus hábitos de
desperdício, erradicados. Eles estudavam de tudo, já que a
especialização, num futuro próximo, se tornaria um hábito do
passado. Todos precisariam saber de tudo um pouco, ou muito, até
quanto cada um fosse capaz de absorver.
Eles estavam sendo requisitados por diversos setores da sociedade
para que participassem de Associações e Conselhos. A todos
agradeciam a lembrança, antes de declinar do convite. A alegação é
que havia absoluta incompatibilidade entre os seus ideais
reformadores e as ações limitadoras das instituições públicas ou
civis.
Outra recusa permanente era a de empregos públicos, cujos
convites surgiam a todo momento. Os salários eram sedutores, mas
eles não se deixavam seduzir pelos ganhos, impondo como condição a
liberdade de ação, o que não podia ser aceito pelos governantes.
As pessoas se admiravam com as recusas, por ser algo incomum numa
cidade pequena, onde todos sonham com um emprego público. A surpresa
era ainda maior, quando ouviam as justificativas apresentadas. Eles
preferiam atividades sem remuneração a salário e status de um
cargo público. Ideais, e não dinheiro, moviam o casal semeador.
O nosso casal de semeadores entendia que somente o trabalho a
favor do coletivo se reflete de modo positivo e definido a favor de
cada um individualmente. Eles se consideravam remunerados pelas
energias de troca com a humanidade, que resultavam em créditos de
energia vital, alimentando-os e deixando-os fortes e sadios.
Os nossos semeadores desprezavam a fama com seus falsos valores.
Eles davam as costas ao poder, por considerá-lo mera ilusão de
controle, que não resultava em progresso para o povo, e somente
retrocesso para a evolução da espécie humana.
A pergunta que todos faziam era por que eles eram tão diferentes,
tão dignos em meio a tanta indignidade, tão justos, diante de
tamanhas injustiças. E para que estas questões pudessem ser
respondidas e entendidas é que resolvemos contar a história do
casal semeador.
Um casal único!
ResponderExcluirFelizmente, já começamos a ser bastantes e, mesmo aqueles que ainda duvidam um pouco, já começam a estar interessados nessas novas propostas. Até porque essas novas propostas apenas reforçam aquilo que muitos de nós viveu na sua infância e que consideramos ser verdadeiramente a vida digna.
A importância da entreajuda dos vizinhos, a importância do professor como mestre, a agricultura biológica, os produtos naturais. Muitos de nós viveu isso, nem que seja na terrinha dos seus pais, avós, bisavós. É como se o longo processo da tradição fosse retomado, mas agora sem os dinamismos mais egóicos do poder.
Mas o maior desafio agora também começa a ser outro: não é só o interesse, mas a acção, arregaçar as mangas para construir esse mundo.
Abraços de bom ano!
Jorge
Um dia, todos nós chegaremos lá, meu caro Jorge!
ResponderExcluirSó não sabemos quando!
Aos poucos, a sociedade perceberá que dinheiro demais faz mal, e é o maior responsável pelos grandes crimes e tragédias da humanidade.
Enquanto este tempo não chega, as desgraças continuam, por culpa da ganância pelo poder do dinheiro.
Um grande abraço com votos de muita saúde, neste 2019 que se aproxima.
Gilberto.