CAPÍTULO DEZESSEIS
Gibran meditava e se deixava transportar para outro tempo. Ele se
via numa terra estranha e falando um idioma estranho. A conversa era
outra, mas os ideais eram os mesmos. Helga de um lado e seus escritos
do outro eram suas únicas companhias naquelas divagações
reflexivas.
Ele se via num local distante, escrevendo e conversando. O seu
Mestre transmitia ondas que se materializavam em partículas,
mensagens de sabedoria resultando em palavras nas folhas em branco à
sua frente. Helga falando de seus canteiros de ervas e colocando
pratos de sopas perfumosas e saborosas à sua frente.
Ele sabia que eram lembranças da última vida. Helga voltara com
ele, e os escritos estavam arquivados em sua memória espiritual. Ela
ajudava-o a relembrar os momentos e a sua memória seduzia-o a
rememorar os conselhos do Mestre.
Imagens fugidias e recomendações esparsas faziam parte do
quebra-cabeça. A casa simples e confortável, o quintal amplo e encanteirado. Ervas nos canteiros e na cozinha, do produtor ao
consumidor.
Palavras soltas no papel, conselhos de sabedoria. Filhos
percorrendo o mundo, muitas saudades. Mão na terra, riacho cortando
as beiras de caminho, regas diárias e colheitas fartas. Iniciação
numa vida, preparação para a outra. Agora, era a vez da outra.
Ideias, ideais e lembranças. Portais ora abertos ora fechados.
Uma fenda no tempo ou o tempo sem fendas nem divisões. Hoje, o
amanhã de ontem da mesma alma, ou, nova vida e outra consciência
cuidando das mesmas tarefas?
Por momentos, ele parecia ouvir a voz mansa e penetrante do Mestre
ditando-lhe ensinamentos e conhecimentos. De repente, ele se sentia
no passado, noutra terra, noutro corpo e noutra missão. Era preciso
aprender, para saber. Saber o que, perguntava ele, naquela época?
Saber por quê? Não havia resposta.
Agora, ele percebia o quanto ele detinha conhecimentos.
Aprendizado do nada e sem saber como explicar. O Mestre voltara, é
verdade! Novas mensagens, novos conhecimentos. Mas, e as respostas
que surgiam na mente, vindo de lugar nenhum! Eram conhecimentos
passados, eram segredos soprados no ouvido? Quem os soprava? O
Mestre, sem dúvida, o amigo e mestre Saint Germain!
As verdades que ele tanto defendia não eram ideias dele, ele era
somente o mensageiro. O mensageiro da humanidade, o discípulo a
serviço do Mestre, o fiel escudeiro da Fraternidade Branca. Ele
semeava em solo estéril, enquanto a matéria orgânica não
fertilizava o solo. Helga encontrava um pequeno espaço do terreno
fértil, e ali depositava as suas sementes.
Final da tarde, o frio chegando e as tarefas em dia. Chá ou café?
Sopa ou um chocolate quente? Tudo muito saboroso, pela presença
adorável de Helga e a certeza de que eles nunca estavam sós. O
Mestre envolvia-os de saúde, protegia-os contra tudo e todos. Nada a
temer, nenhum perigo no ar. Amanhã será sempre um novo dia, ou quem
sabe uma nova vida. Que diferença faria, era tudo o mesmo!
CAPÍTULO DEZESSETE
O amanhecer de um dia, o nascer de um novo sol, o surgir de novos
conceitos e ideias a defender. Cada dia era uma existência própria
e inteiriça, com início, meio e fim. Tarefas do cotidiano eram
empreitadas espirituais de repercussão mundial.
Gibran e Helga haviam sido inspirados a denunciar a mídia, os
meios de comunicação que conspiravam pelos ricos e pela distorção
da verdade. As notícias veiculadas eram fabricadas em máquinas de
produzir mentiras e retocadas com fios de sedução e tentação. O
resultado era a propaganda enganosa, falsas denúncias, sutis
agressões à honra de criaturas honestas e defesa e exaltação de
corruptos e gananciosos.
Tudo em nome do progresso e das riquezas. Quem acreditasse nessa
falácia, seria mais um tolo a engrossar as fileiras das massas
ingênuas e controladas. Os meios de comunicação serviam o poder. O
poder alimentava uma restrita comunidade de manipuladores da verdade.
Esta comunidade era a responsável por espalhar inverdades e
disseminar o medo nas populações. O medo era a matéria-prima do
poder, a essência que mantinha as massas controladas e dominadas,
sem coragem para reagir.
Gibran não se conformava e reagia contra a mídia. Esta não
estava nem aí para o que Gibran dissesse ou denunciasse. Ele não
acreditava na sua fraqueza, e insistia em denunciar esses
manipuladores de notícias. Notícias eram falsas com um fim
determinado, ou verdadeiras com a intenção de distrair as massas.
Gibran acreditava que nada era em vão, qualquer movimento agia
como onda e se espalhava por todo o planeta. Se alguém começasse a
repetir uma tese, logo ela seria repetida por muitos, e atingiria
terras distantes. Era assim que agiam os partidários da escravidão
pelos meios de comunicação, e ele responderia na mesma moeda. Ele
sabia que nunca estava sozinho, e que tudo que fizesse, por mais
simples que fosse, teria repercussão no mundo.
Gibran e Helga se envolveram em inúmeras atividades na cidade, e
logo se tornaram conhecidos por suas ideias ambientalistas e pela
seriedade com que lidavam com o poder. Eles fundaram uma associação
cultural, e ali procuravam valorizar atividades que despertassem a
consciência do povo para suas origens, para a história de suas
famílias e para o culto às raízes e tradições de Minas.
Vamos encontrá-los na rádio local, sendo entrevistados sobre a
importância da conservação da memória da cidade, mediante a
construção de um museu. Eles nunca perdem tempo ou espaço. Onde
quer que estejam, aproveitam as brechas para semear as suas sementes
do amanhã.
Eles sabem ser convincentes, por usar uma linguagem sincera e
franca, não atacando e nem condenando. Eles apenas defendem e
valorizam as suas ideias. As antigas construções, em sua maioria,
já tinham sido derrubadas. Contra esse descaso do poder público com
a história da cidade, eles mostravam ações, de proteção ao
patrimônio histórico e arquitetônico, ocorridas noutras cidades, e
que resultaram em benefícios para a população.
Alguém alegou que o progresso exigia a construção de novos
prédios e de novas avenidas mais amplas para atender ao crescimento
das cidades. A resposta foi incisiva e imediata, “mas sem destruir
o que já existe e que faz parte da história local”.
O entrevistador insistiu num progresso de mais prédios para
abrigar mais gente e avenidas mais largas para receber os novos
veículos. Ao ser indagado sobre essa necessidade de expandir o
acesso à moradia e ao transporte, Gibran respondeu com simples
perguntas: “e os espaços livres para as caminhadas, as praças
para os encontros de fim de tarde, a pureza do ar para sentir a
fragrância da floração de primavera e os grandes parques para o
lazer dos jovens”? O que fazer além de se deslocar de automóvel,
escalar enormes espigões dentro de elevadores velozes e furiosos e
ficar trancado dentro de cubículos de concreto?
A cidade era pequena, mas progredia vorazmente, em direção ao
destrutivo progresso das grandes cidades. Dentro em breve, novas
avenidas, novos prédios e menos praças e jardins. Gibran prosseguiu
pintando um quadro triste e desolador, calando o interlocutor e dando
um alerta do risco em confundir progresso com ocupação desordenada
do solo.
Ele mencionou outras cidades no mundo em que, a abertura de novas
vias de transporte, logo se mostrou infrutífera, diante do aumento
de veículos em circulação pelas modernas e convidativas vias. O
tráfego piorou com a expectativa de pistas melhores, mais largas e
mais bem sinalizadas, que eram atrativos a mais para serem ocupadas
pelos veículos que, ou ficavam nas garagens, ou ainda estavam nas
agências, à espera de comprador.
Gibran concluiu que não era expandindo as possibilidades de
circulação e ocupação que os problemas urbanos seriam resolvidos,
mas com planejamento e desenvolvimento que privilegiasse a qualidade
de vida. E, como ele costumava dizer, qualidade de vida é pureza no
ar e na água, e segurança nas ruas. O resto vem a reboque.
O jornalista que o entrevistava gaguejou, antes de reconhecer que,
realmente, mais gente e mais trânsito circulando pela cidade não
podiam ser creditados a favor da qualidade de vida. Gibran defendeu
destinar-se mais ruas somente para pedestres, construir e preservar
praças ajardinadas com pequenas conchas acústicas para recitais e,
ambientes aconchegantes em ruas e largos, para a colocação de mesas
e cadeiras para relaxantes bate-papos regados a café ou chá.
O casal se despediu dos ouvintes, com um alerta de que tudo que
defendiam não era utopia, mas projeto de vida para um futuro sadio.
Governantes e governados precisavam dar as mãos e planejar a cidade
do futuro. Nada de riquezas e ostentações, mas conforto, beleza
natural e vida saudável.
Aquela volta para casa foi revigorante, num sol morno e a brisa
perfumada. As sementes foram lançadas numa maior quantidade pelas
ondas do rádio. Muitas se perderiam às margens do caminho, outras
seriam tratadas com cuidado, mas por muito pouco tempo. E poucas,
muito poucas germinariam e atingiriam a consciência do povo num
tempo futuro.
CAPÍTULO DEZOITO
Gibran se esticou na rede, e perguntou a Helga o que ela achou da
entrevista. Ela pensou antes de responder, e disse que não esperava
grande coisa, além de um burburinho entre amigos.
Se as grandes redes noticiassem algo semelhante, em rede nacional,
talvez houvesse alguma repercussão que provocasse mudanças de
comportamentos. Mas, uma entrevista em rádio local, para uma
população pouco esclarecida, não ia influir muito. Ela só
defendeu a iniciativa, para não desprezar uma chance que podia
atingir uma meia dúzia de pessoas.
Gibran aproveitou a deixa para lamentar que a sociedade iludida
entregasse nas mãos dos poderosos da mídia o direito de criar
verdades. O que acabava prevalecendo não era a verdade em si, mas o
mais moderno e as tendências predominantes a partir de pesquisas
manipuladas por interesses econômicos.
Os meios de comunicação divulgam mentiras com sabor de
comprovadas verdades. Os anúncios de televisão são verdadeiros
primores de mentiras oficiais. A qualidade exaltada, a riqueza
ofertada, o cenário fantasioso, tudo conspira para uma perfeita
encenação de verdades fabricadas.
Tem gente que crê em tudo que ouve e que vê. E para justificar
sua ingênua credulidade, essas pessoas afirmam que se não fosse
verdade, a televisão não mostraria daquele jeito. E assim as massas
se deixam manipular, enganadas por falsas notícias e argumentos
enganosos.
Helga lembrou-se da conversa com amigos sobre o livre arbítrio.
Ela protestara, perguntando que livre arbítrio estava sendo alegado.
Livre arbítrio pode ser tudo que se imagine ser, menos livre. As
opiniões são próprias ou conduzidas pelos meios de comunicação?
Quem estuda os temas que são levantados pelos órgãos de imprensa?
Quem avalia as afirmações dos formadores de opinião pública,
antes de dar a sua opinião?
Dizia Gibran, pensando em voz alta, que o povo parecia um bando de
zumbis, repetindo frases feitas, cantarolando músicas destituídas
de valor e comprando produtos sem antes refletir se querem mesmo ou
se precisam do monte de bugigangas oferecidas a perder de vista. Eles
não passam de robôs comandados pela esperta mídia que mente dentro
da lei.
A rede televisiva apregoa princípios e padrões, mas, anuncia
bebidas, remédios enganosos e produtos que envenenam o corpo. O que
importa mesmo é a conta milionária que sustenta campanhas
publicitárias. Se o que é anunciado faz bem ou faz mal, ou não
influi e nem contribui, não entra em discussão.
O telejornal acaba de noticiar uma notícia real, mas no intervalo
uma propagando enganosa confunde a cabeça do cidadão. As notícias
se misturam com as propagandas, dando uma sensação a quem assiste
que uma está integrada à outra, e que pode confiar na mensagem do
intervalo. Tudo enganação! A mentira dita em horário nobre, em
rede global, passa a ser verdade.
Por tudo isto, e muito mais, as pessoas perderam o referencial da
verdade. Ninguém mais se preocupa com o que diz, basta um simples
desmentido e fica o dito pelo não dito. O hábito da mentira gerou o
boato, que é o filho mais novo da mentira, e que já está bem
crescidinho.
As propagandas enganosas se sucedem, desafiando as leis, enganando
o consumidor e fazendo crescer o faturamento das empresas. As
consequências ficam por conta dos grandes escritórios de advocacia
que minimizam os efeitos com processos longos e inconclusivos, em sua
grande maioria.
Estas reflexões tiram Helga do sério, e deixam Gibran pensativo
e calado. Ela acredita que é preciso fazer alguma coisa, ele confia
e espera, e enquanto espera trabalha. E para consolar Helga, ele
argumenta que as pessoas ficaram acostumadas a serem comandadas, e
não valorizam suas opiniões e não se dão conta que não mais
tomam decisões pessoais.
Longe de se acalmar com a intervenção de Gibran, Helga ataca com
maior indignação os que são levados no cabresto e reclamam de
tudo. Ela ataca a sociedade dos “coitadinhos de mim”, onde todos
resmungam e cobram ajuda, como se os outros, alguns que não eles,
devessem assumir as suas tarefas. Quando esses outros resolvem ajudar
o preço é muito caro, ainda que possa ser pago a médio e longo
prazo, em prestações mensais, nem pequenas e nem suaves.
Gibran intervém, e pede para Helga se acalmar, e promete que tudo
vai mudar com a chegada dos novos tempos. Ela ouve, e ele fala desses
tempos que cobrarão novas atitudes, quando quem não comandar seu
próprio destino não terá motivo para permanecer no mundo.
Helga pergunta: - e os manipuladores, os falsos guardiões da
verdade, as redes globais e os bons mocinhos que douram as notícias
enobrecendo as mentiras? Esses também perderão poderes e serão
reconhecidos como inimigos da humanidade. Novas sementes formarão um
novo campo humanitário, com frutos nobres e sadios, nascidos da
liberdade de um solo fértil e produtivo. Os novos frutos trarão um
sabor diferente à vida na Terra.
Helga olhou com um jeito meio irônico para Gibran, e exclamou:
“Lá vem você com essas imagens de lavoura e campo, como se
vivêssemos numa sociedade rural em outra época e lugar”.
Ele sorriu, balançou a cabeça, e preferiu mergulhar em suas
reflexões. No silêncio de sua mente, ele visualizava uma nova
sociedade, ordeira e hospitaleira, abrindo as portas para os
visitantes e acolhendo no coração os desvalidos e ignorantes. Ela o
acusava de otimista e sonhador, e talvez ela tivesse razão. Mas, ele
tinha os seus motivos para ser assim.
Era melhor sonhar dormindo, pois o corpo pedia repouso. A noite
chegaria trazendo paz ao sítio exterior e ao interior. O frescor da
noite convidava para o aconchego da cama. Dois corpos se aqueceriam,
por dentro e por fora. Mas, isto já faz parte da privacidade do
casal!
Esse casal é maravilhoso e nos ensina tanta coisa! E novamente tanto por dizer, tanto que ficará por dizer também!
ResponderExcluirQuando o mestre reflectiu sobre a questão do livre arbítrio, eu me lembrei da questão da dependência e da independência. Há muita gente que se diz independente e eu pergunto: independente em que aspecto? Porque já não vive em casa dos pais? Porque tem emprego, diploma e ganha o seu dinheiro? E é independente dos anúncios publicitários? Das artimanhas da média, das notícias televisivas. Normalmente, se calhar é tão dependente como qualquer pessoa que vive dependente fisicamente da família. Penso que a verdadeira independência implica um grande questionamento interior, saber ter memória e cultura (fundamental para os dias de hoje e, não só para o património como Gibran bem explicou, mas para tomar decisões conscientes nada dependentes das notícias da média. E, finalmente, seguir com todo o seu coração a sua missão <3
Muitos abraços para todos
Jorge
Poucos se dão conta, Jorge Vicente, da prisão em que vivem.
ResponderExcluirEles não podem fazer o que querem, mas o que as rotinas sociais e profissionais permitem.
O que é a liberdade?
Viver sob as ordens alheias, sob o horário e critérios morais do patrão, este modo de vida é viver livre e ser independente?
A maioria prefere se sujeitar a isto e passar para o controle do chefe o seu modo de viver.
Se cometer erros dirá que só estava cumprindo ordens.
Um dia, isto vai mudar, a nova safra de seres humanos vai transformar o mundo.
Abraço.
Gilberto.