sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

OS SEMEADORES DO AMANHÃ - CAPÍTULOS 19 E 20

CAPÍTULO DEZENOVE
Domingo, dia de Globo Rural.
Diante da telinha, o casal de semeadores acompanha as notícias do campo. Embevecidos, admiram paisagens e se encantam com as áreas ainda preservadas. Enchem-se de entusiasmo com o perfeito tratamento das terras para o plantio sem agrotóxicos. Entristecem-se com os animais aprisionados, para ser sacrificados.
As imagens surgem e as notícias correm. Eles comentam os fatos, criticam as atitudes dos homens e sonham com o emprego de novas ações ambientais. Eles não se conformam com os métodos cruéis de lidar com a terra e com os animais.
Eles têm a consciência plena de seus papéis de provocar mudanças, gerar novos comportamentos e transformar antigos paradigmas. E sofrem, quando se sentem impotentes para evitar tanto desperdício, agressões, ignorância e pobreza. Eles lamentam perceber o quanto a humanidade perdeu o rumo do verdadeiro progresso.
As cenas se sucedem na tela, surgem notícias das misérias do campo, das injustiças sociais contra os camponeses e dos protestos dos agricultores reclamando da dificuldade para a liberação da verba para plantio.
Falta dinheiro, a cotação do produto está em baixa, houve quebra de produção de certo produto lá fora, e por isto o seu preço interno cresce. Então, surge o alerta, é hora de plantá-lo. Mas, se houver uma supersafra, o preço vai baixar. Se isto ocorrer, não haverá uma saída, o produtor já se endividou. E novos problemas serão enfrentados. Como evitar essa roleta rural, que gira a cada ano, à espera de novas apostas.
É o cassino rural, onde a terra é a roleta, a semente é a bolinha que desliza sobre os números, que são as vontades da Mãe Natureza. As fichas são os recursos tomados como empréstimo, o Estado é o banqueiro e os agricultores, eternos jogadores.
O resultado desta sacrílega jogatina, jogada sobre o pano verde da sagrada terra, é o permanente caos, em que até mesmo o banqueiro, que em outras atividades sempre sai ganhando, aqui, pode sair perdendo.
Helga se volta para Gibran e afirma com indisfarçável revolta – “é tudo por causa da ambição”. Ele balança a cabeça concordando, e completando – “se cada qual plantasse com seus próprios recursos, se levassem em conta os naturais riscos das variações climáticas, as perdas seriam mínimas e os prejuízos irrisórios”.
As maiores perdas são dos que mais arriscaram. Quando ganham, não questionam o processo. Quando perdem, atacam as regras do jogo, buscando responsáveis e se negando a pagar as contas.
O diálogo dos dois prossegue, à medida que as imagens se alternam e as notícias se repetem. É tudo previsível, todo ano é a mesma lenga-lenga. Quem perdeu grita e quem ganhou se cala. Virá um ano em que as posições se invertem e as atitudes se repetem.
Helga não se conforma e afirma que está tudo errado. Gibran balança afirmativamente a cabeça. Ela protesta e ele reflete calado. Em sua mente, surge a pergunta: “Por que o Estado deve arcar com os prejuízos, se quando acontecem lucros, os dividendos não são rateados com os contribuintes”?
Na cabeça de Gibran não tem sentido o Governo ajudar quem perdeu no jogo agrícola. Quando se entra num jogo ou se ganha ou se perde. E, afinal de contas, cobrar ajuda do Governo é o mesmo que pedir ajuda ao povo, que é o legítimo dono do cassino. Por sinal, um dono que sempre perde, nas mãos do administrador e dos jogadores.
Nos tempos de fartura, os jogadores correm para o mercado em busca do lucro máximo. Nas épocas de quebras, o protesto e a busca de vítimas que aceitem assumir as perdas. Como o Governo jamais assume a condição de vítima, o prejuízo sobra para o contribuinte.
Gibran e Helga ficam indignados com este processo absurdo, que leva o caos ao campo, sem sinal de solução. Basta uma geada no Sul, uma seca no Nordeste ou enchentes no Sudeste, e todo o ciclo de perdas, quebras de safra e ameaça de falências se repetem. E nem uma vivalma tem a coragem de se insurgir contra essas máquinas que lucram com o fracasso alheio.
Os “com-terras” reclamam da falta de recursos para plantar, os “sem-terras”, da falta de terra para plantar. Uns a têm e não sabem o que fazer com ela; outros sonham em tê-la, sem imaginar o pesadelo de vir a entregá-la para os bancos credores.
O homem nunca mais soube conviver com a natureza, depois que abandonou a vida na floresta e se fixou nas cidades. Ele briga com os fenômenos naturais, tentando subverter o clima e as estações.
Desviam rios, aterram lagoas e invadem praias, imaginando-se impunes ao alterar a relação terra-água. Mexer nesses espaços é o mesmo que alterar o metabolismo do corpo planetário. Depois não adianta enfrentar as inundações ou estiagens com lamentos e acusações.
A chuva, o calor, o frio, o vento, a geada, são reações instintivas do corpo do planeta, semelhantes ao choro, o riso, o amor, o rancor, a frieza, do corpo humano. O homem precisa entender a natureza para interagir com ela, e não enfrentá-la com o intuito de transformá-la ao seu bel prazer.
Como imaginar que poluindo a terra se possa receber em troca fertilidade e produtividade! A humanidade apagou da memória que tudo tem vida, mesmo os objetos inanimados. Uma árvore, uma pedra, um punhado de terra, um caneco com água, tudo está vivo.
E o que dizer dos animais, o reino mais próximo do homem? Salvo raríssimas exceções, quando o homem se deixa ser o melhor amigo do seu bichinho de estimação, no mais, ele trata a todos com rara crueldade.
As criações, as granjas, os animais confinados para satisfazer o paladar humano. E o que dizer das engordas exageradas, das práticas desumanas de afastar os filhotes das mães e de manter aves despertas com o uso de iluminação artificial?
Até quando a raça humana continuará insistindo com essa presunçosa teoria de que tudo que existe no planeta foi criado somente para servi-lo ou satisfazer o seu apetite. Ou, melhor seria, simplificando a questão, quando se amará ao próximo como a si mesmo?
Mas, quem é o meu próximo, Senhor? Os meus pais, meus parentes, filhos e filhas, marido e esposa? Não somente os irmãos humanos, e todos, não só os mais próximos, mas também o animal preso no curral, a planta confinada no seu jardim, a pedra solta no leito do rio, as aves que voam sobre suas cabeças.
Tudo isto se passa na mente do nosso casal, diante da televisão. Já não falam mais, só pensam. Os dois se arriscam a trocar algumas palavras sobre o tempo que está por vir. O caçador e a sua caça repousarão juntos, às margens do rio da vida.
Eles visualizam os campos plantados, cercados por bosques preservados. Eles sabem que, dias virão em que o homem não mais matará para comer, retirando seus alimentos da terra, e só da terra, fartos e puros.
Os homens viverão em plena harmonia com os demais reinos da natureza, num encadeamento ecológico perfeito, um servindo o outro. Nada de violências, guerras ou destruições.
O êxodo das cidades de volta aos campos, construindo-se belas agrovilas, está mais próximo do que se possa imaginar. Na cidade ou no campo, as fábricas anularão seus focos poluidores. O homem terá de aprender a respeitar o homem, antes de assumir a nova consciência de conviver em paz com os seres de outros reinos.
Antes de desligar a televisão, surgiu um estimulante alento, com uma reportagem sobre uma comunidade, localizada em Santa Catarina, numa rota chamada Estrada Bonita. As pessoas viviam do artesanato e de produtos caseiros que eram ofertados aos turistas, atraídos pela beleza da região. Além das compras, os visitantes podiam conviver com o estilo de vida dos moradores, visitando suas casas e participando da produção artesanal de tudo que era posto a venda.
– É isto, este é o caminho para o amanhã, exclamou Helga. Cada qual produzindo o que sabe, e em suas próprias casas. Casas em regiões preservadas, onde as matas nativas são respeitadas e cultuadas como nossas fontes de vida.
Os compradores serão os viajantes que, enquanto passeiam e se divertem, entram em contato direto com a vida simples dos artesãos, adquirindo produtos puros, sem química ou aditivos artificiais.
Ele, sonhando com as agrovilas. Ela, vislumbrando a estrada bonita, que liga o sonho à realidade. Eles, semeando ideias, plantando as civilizações do futuro e estabelecendo as premissas do amanhã. O saco de sementes, aos poucos, estava ficando vazio.
CAPÍTULO VINTE
Com o passar do tempo, o nosso casal ia ficando conhecido na sua comunidade. Suas ideias diferentes e seus hábitos pouco comuns tornavam-se motivo de curiosidade para grande parte da vizinhança.
Os seus relacionamentos foram se estendendo, incluindo fazendeiros, médicos, professores, políticos e considerável número de comerciantes. Com todos, eles mantinham a mesma atitude, semeando conceitos criativos e simples.
Muitos dos seus vizinhos, pessoas desconfiadas e supersticiosas, julgavam-nos magos e seguidores de alguma seita misteriosa. Os mais próximos reconheciam neles princípios cristãos e atitudes humanitárias. Os mais perspicazes sabiam que eles cultuavam crenças baseadas em poderes ocultos de uma espiritualidade sagrada, mas sem religião.
Eles possuíam intensos poderes que dominavam as energias em todos os ambientes, graças às suas forças mentais. Eles pregavam o controle sobre ações e reações mediante o uso da vontade e do poder mental.
A vida seguia em frente, e o nosso casal de semeadores não perdia o passo, acelerando quando necessário, e reduzindo a marcha na hora de refrear certos impulsos inovadores, deixando o tempo fluir.
O tempo passava, e, a cada dia, eles eram mais conhecidos e respeitados. As visitas vinham em busca de conselhos sobre como se relacionar com a natureza ou lidar com doenças por meio de curas naturais. Alguns desejavam consultá-los sobre os métodos mais criativos para ensinar e prender a atenção das crianças.
Em meio a tantos visitantes, apareciam os curiosos em busca de conselhos sobre suas vidas, seus problemas e frustrações. Nenhum saía sem uma palavra amiga de estímulo, esperança ou conciliação. A paz e o amor eram ensinados, em todas as situações. Assim, aos poucos, a comunidade se tornou pacífica e participativa.
O bairro onde moravam, um dos mais carentes da cidade, foi se modificando e chamando a atenção das autoridades, pelas novas posturas do povo. A escola passou a adotar seus métodos pioneiros e criativos. O posto de saúde do bairro tornou-se o mais dinâmico e eficiente. Até mesmo, os políticos do bairro passaram a se destacar nas sessões da Câmara.
Pouco a pouco, o nosso casal passou a ter livre acesso às instituições locais, chamado para dar palestras sobre os mais variados temas. Escolas, associações de moradores e fundações de apoio às crianças eram os principais locais de suas apresentações.
A escola do bairro realizou um seminário sobre a influência das relações familiares no aproveitamento escolar dos alunos. O nosso semeador foi o principal orador, abordando a necessidade de conscientizar os pais dos alunos sobre a metodologia aplicada na escola.
Tempos depois, inspirado pelo sucesso da palestra na escola, ocorreu outro seminário sobre a medicina preventiva e os modernos métodos alternativos para se evitar doenças. O sucesso repercutiu de tal forma que mudou a postura da Secretaria de Saúde.
O próximo passo veio a ocorrer na associação de moradores, que programou um fórum de debates sobre a inclusão do trabalho de toda a família, na formação da renda familiar. A ideia parecia simplória, mas mexeu com a cabeça do povo. A sugestão de preparar a família para a execução de um trabalho conjunto, em que todos se dedicariam a tarefas diferentes buscando um objetivo comum.
Aproveitando o sucesso da série de palestras proferidas por Gibran, a creche municipal convidou Helga para dar uma série de palestras sobre os cuidados com a natureza e a importância da preservação de florestas e bosques. Sucesso absoluto! Novos convites e um sem números de oportunidades para levar os conceitos ambientais adiante.
O nosso casal, com tantos convites, vivia ocupado entre salas de reuniões e atividades na terra, entre o discurso criativo e o plantio de mudas de árvores, entre a semeadura e a colheita. Era preciso plantar, sem se descuidar da colheita. Uma e outra tinham de caminhar juntas, para evitar desperdícios.
Muitos semeavam, e o orgulho com o feito fazia com que se esquecessem da época da colheita. Outros até que colhiam bons frutos, mas, a euforia com a boa colheita fazia-os esquecerem da nova semeadura. E, assim, a continuidade do trabalho se perdia.
Gibran e Helga sabiam que a humanidade vivia um momento de rara energia, quando tudo deveria ser aproveitado e os maus hábitos de desperdício, erradicados. Eles estudavam de tudo, já que a especialização, num futuro próximo, se tornaria um hábito do passado. Todos precisariam saber de tudo um pouco, ou muito, até quanto cada um fosse capaz de absorver.
Eles estavam sendo requisitados por diversos setores da sociedade para que participassem de Associações e Conselhos. A todos agradeciam a lembrança, antes de declinar do convite. A alegação é que havia absoluta incompatibilidade entre os seus ideais reformadores e as ações limitadoras das instituições públicas ou civis.
Outra recusa permanente era a de empregos públicos, cujos convites surgiam a todo momento. Os salários eram sedutores, mas eles não se deixavam seduzir pelos ganhos, impondo como condição a liberdade de ação, o que não podia ser aceito pelos governantes.
As pessoas se admiravam com as recusas, por ser algo incomum numa cidade pequena, onde todos sonham com um emprego público. A surpresa era ainda maior, quando ouviam as justificativas apresentadas. Eles preferiam atividades sem remuneração a salário e status de um cargo público. Ideais, e não dinheiro, moviam o casal semeador.
O nosso casal de semeadores entendia que somente o trabalho a favor do coletivo se reflete de modo positivo e definido a favor de cada um individualmente. Eles se consideravam remunerados pelas energias de troca com a humanidade, que resultavam em créditos de energia vital, alimentando-os e deixando-os fortes e sadios.
Os nossos semeadores desprezavam a fama com seus falsos valores. Eles davam as costas ao poder, por considerá-lo mera ilusão de controle, que não resultava em progresso para o povo, e somente retrocesso para a evolução da espécie humana.
A pergunta que todos faziam era por que eles eram tão diferentes, tão dignos em meio a tanta indignidade, tão justos, diante de tamanhas injustiças. E para que estas questões pudessem ser respondidas e entendidas é que resolvemos contar a história do casal semeador.


2 comentários:

  1. Um casal único!

    Felizmente, já começamos a ser bastantes e, mesmo aqueles que ainda duvidam um pouco, já começam a estar interessados nessas novas propostas. Até porque essas novas propostas apenas reforçam aquilo que muitos de nós viveu na sua infância e que consideramos ser verdadeiramente a vida digna.

    A importância da entreajuda dos vizinhos, a importância do professor como mestre, a agricultura biológica, os produtos naturais. Muitos de nós viveu isso, nem que seja na terrinha dos seus pais, avós, bisavós. É como se o longo processo da tradição fosse retomado, mas agora sem os dinamismos mais egóicos do poder.

    Mas o maior desafio agora também começa a ser outro: não é só o interesse, mas a acção, arregaçar as mangas para construir esse mundo.

    Abraços de bom ano!
    Jorge

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  2. Um dia, todos nós chegaremos lá, meu caro Jorge!
    Só não sabemos quando!
    Aos poucos, a sociedade perceberá que dinheiro demais faz mal, e é o maior responsável pelos grandes crimes e tragédias da humanidade.
    Enquanto este tempo não chega, as desgraças continuam, por culpa da ganância pelo poder do dinheiro.

    Um grande abraço com votos de muita saúde, neste 2019 que se aproxima.
    Gilberto.

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