domingo, 28 de outubro de 2012

QUE ASSIM SEJA - CAPÍTULO III



                                           CAPÍTULO III
            Roque chorou a morte da esposa, por semanas a fio. Não fosse a companhia de Lívia, a solidão seria insuportável.
            Lívia ficou de luto, calada no seu canto, por 7 dias e 7 noites. Terminada a missa de sétimo dia, a graça dos seus 15 anos voltou a tomar conta do seu rosto. Ela abraçou Roque, na porta da igreja, e disse-lhe com todo carinho: “Eu estou aqui”.
            Emocionados, eles se abraçaram, e Roque teve a sensação de que era a Lídia dos tempos de namoro, que estava ali envolvida no seu abraço. Por alguns instantes, ele não sentiu falta de Lídia.
            Desse dia em diante, Lívia ia regularmente visitar Roque, e ficavam conversando durante horas, perdendo a noção do tempo, até que o cansaço viesse adiar para o dia seguinte o resto do assunto, que parecia não ter fim.
            Roque sentia Lívia mais adulta, e com certos trejeitos maliciosos, que faziam com que ele viajasse ao passado, e lá se reencontrasse com a sua Lídia, meio Capitu, meio Lolita. Ele tratava de tirar essas fantasias da cabeça, com medo de que o levassem por um caminho arriscado e embaraçoso.
            Chegou um tempo, porém, que ele não mais conseguia evitar aquela atração exercida pela presença de Lívia. Cada dia que se passava, Lívia mais se parecia com Lídia. Até que não mais existia a Lívia, era Lídia que se apresentava à sua frente, repetindo os mesmos gestos e até as frases costumeiras, com que a esposa costumava brincar, fazendo um jogo de palavras, que só eles conheciam.
            O sorriso, o olhar, as brincadeiras, o modo carinhoso de tratá-lo, e até certos cacoetes surgiam como sinais daquela mística presença de Lídia, no corpo jovem e bonito de Lívia.
            A sensação inicial foi de temor, medo do desconhecido, um receio de estar lidando com uma força misteriosa, que podia ficar fora de controle. Havia um misto de medo e prazer e, por conveniência ou cautela, Roque decidiu observar um pouco mais, antes de tomar alguma atitude.
            Um acontecimento inusitado precipitou os acontecimentos, e obrigou-o a rever muitos dos seus conceitos religiosos, que, até então, permaneciam intocados, desde os seus tempos de quase seminarista.
            A essa altura, os pais de Lívia não escondiam a sua total desaprovação àqueles encontros diários, com a filha trancada, a tarde inteira, na casa do viúvo solitário. Os familiares de Roque e seus amigos, também, criticavam aquele relacionamento excessivamente íntimo, de um homem com a sua idade e uma menina de 15 anos. Trinta anos os separavam, enquanto afinidades e sentimentos aproximavam-nos cada vez mais.
            O tal acontecimento que precipitou tudo não foi um ato leviano da parte dele, nem um impulso malicioso de iniciativa dela. Tua mente, caro leitor, tão acostumada a esses escândalos do cotidiano, já deve estar dando tratos à bola, e imaginando um assédio sexual de um velho tarado, ou um irresistível ato de sedução de uma ninfeta desavergonhada. Nem uma coisa, nem outra.
            De repente, no meio de uma conversa, Lívia parou o que estava falando, olhou-o no fundo dos olhos, e sussurrou: “Roque, sou eu, Lídia, eu mesma, a sua Lídia”.
            Roque era católico convicto, não acreditava nessas coisas de mediunidade, vidência e reencarnação. Mas, as circunstâncias vinham obrigando-o a refletir como Lívia estava parecida com Lídia. E foi no meio de uma dessas reflexões que ele se viu surpreendido pela confissão de Lívia, ou de Lídia, ou quem quer que fosse.
            Antes que ele se recuperasse do golpe, Lívia assumiu por inteiro os gestos e até o timbre de voz de Lídia, passando a relatar todos os acontecimentos que se sucederam após o dia seguinte à sua morte.
            Poucos ficaram sabendo de um acidente de moto sofrido por Lívia, depois de ter velado o corpo de Lídia, por toda a madrugada. A caminho de casa, com os olhos inchados e ainda soluçando, ela não conseguiu desviar de um buraco, a moto derrapou e ela bateu com a cabeça no chão. A morte foi instantânea. A alma de Lívia deixou o corpo, enquanto a alma de Lídia tomou o seu lugar.
            Roque ouvia tudo isso em estado de choque.
            Lídia alternava o relato dos fatos, com alusões a segredos íntimos que só os dois tinham conhecimento. Assim, ela procurava testemunhos fiéis de sua presença no corpo de Lívia. As revelações não admitiam dúvidas, era ela, Roque já não tinha como não acreditar.
            Roque não se conteve, abraçou-a chorando e contou-lhe o quanto tinha sofrido. Disse-lhe que se não fosse a presença de Lívia, ele não teria resistido a tanto sofrimento.
            Ela corrigiu-o, declarando que nunca fora Lívia, que estivera ao seu lado, mas ela, o tempo todo era ela que lhe fizera companhia. Ela se viu impedida de contar a verdade, antes daquele momento. Mas, não sabia explicar o motivo dessa espera.
            Roque pedia mais detalhes, e ela reconheceu que também não saberia dizer-lhe o motivo de ter sido atraída para assumir o corpo de Lívia. Ela só tinha uma vaga recordação de perceber um sorriso irônico nos lábios de Lívia, quando abandonou o corpo, cedendo-lhe a vez.
            A sensação que Lídia tivera foi de haver recebido um tempo adicional de vida, para poder contar-lhe essas experiências misteriosas, e mudar suas crenças sobre a vida após a morte. Lívia e ela eram como irmãs, e suas almas, talvez, tivessem firmado um pacto antes de reencarnar, envolvendo essa missão.
            Quando assumiu o corpo de Lívia, ela ouviu uma voz que lhe dizia ter 100 dias para o cumprimento dessa tarefa. “Esse será o tempo que irás dispor, para convencer Roque a acreditar nos mistérios que envolvem a existência de um Deus verdadeiro, bem diferente de tudo que ele imagina”. A voz continuou a lhe falar: “Irás ensiná-lo a crer num conceito de divindade, em que Deus está presente em todas as criaturas humanas, mas bem distante de ter uma imagem semelhante à dos homens.” E a voz concluiu: “Ensina-o a crer na jornada da alma, que deve encarnar em corpos físicos, por sucessivas vidas, até atingir a perfeição. Quando ele, enfim, confessar sua crença nas tuas revelações, então, tu estarás livre para morrer, e ele para viver”.

3 comentários:

  1. Muito difícil,toda estória de reencarnação!
    Se envolver e compeender..."Deus bem distante da semelhança com os homens",ouço isso o tempo
    todo:"Que somos imagem e semelhança de Deus".

    Abraços!

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  2. Minha querida Andréa:
    Somos, sem dúvida, imagem e semelhança de Deus. Por isso, não teria nenhum sentido, imaginá-lo num céu distante, onde não se pode alcançá-lo.
    Imagem e semelhança, mas não humano como nós, e sim em energia pura. Somos energia, e não matéria. Aliás, matéria como se imagina não existe, tudo é energia.
    Um abraço.
    Gilberto.

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  3. A cadeia alimentar é um exemplo disso,matéria é pura energia,entendi.

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