CAPÍTULO III
Roque chorou a morte
da esposa, por semanas a fio. Não fosse a companhia de Lívia, a solidão seria
insuportável.
Lívia ficou de luto,
calada no seu canto, por 7 dias e 7 noites. Terminada a missa de sétimo dia, a
graça dos seus 15 anos voltou a tomar conta do seu rosto. Ela abraçou Roque, na
porta da igreja, e disse-lhe com todo carinho: “Eu estou aqui”.
Emocionados, eles se
abraçaram, e Roque teve a sensação de que era a Lídia dos tempos de namoro, que
estava ali envolvida no seu abraço. Por alguns instantes, ele não sentiu falta
de Lídia.
Desse dia em diante,
Lívia ia regularmente visitar Roque, e ficavam conversando durante horas,
perdendo a noção do tempo, até que o cansaço viesse adiar para o dia seguinte o
resto do assunto, que parecia não ter fim.
Roque sentia Lívia
mais adulta, e com certos trejeitos maliciosos, que faziam com que ele viajasse
ao passado, e lá se reencontrasse com a sua Lídia, meio Capitu, meio Lolita.
Ele tratava de tirar essas fantasias da cabeça, com medo de que o levassem por
um caminho arriscado e embaraçoso.
Chegou um tempo,
porém, que ele não mais conseguia evitar aquela atração exercida pela presença
de Lívia. Cada dia que se passava, Lívia mais se parecia com Lídia. Até que não
mais existia a Lívia, era Lídia que se apresentava à sua frente, repetindo os
mesmos gestos e até as frases costumeiras, com que a esposa costumava brincar,
fazendo um jogo de palavras, que só eles conheciam.
O sorriso, o olhar, as
brincadeiras, o modo carinhoso de tratá-lo, e até certos cacoetes surgiam como
sinais daquela mística presença de Lídia, no corpo jovem e bonito de Lívia.
A sensação inicial foi
de temor, medo do desconhecido, um receio de estar lidando com uma força
misteriosa, que podia ficar fora de controle. Havia um misto de medo e prazer
e, por conveniência ou cautela, Roque decidiu observar um pouco mais, antes de
tomar alguma atitude.
Um acontecimento
inusitado precipitou os acontecimentos, e obrigou-o a rever muitos dos seus
conceitos religiosos, que, até então, permaneciam intocados, desde os seus
tempos de quase seminarista.
A essa altura, os pais
de Lívia não escondiam a sua total desaprovação àqueles encontros diários, com
a filha trancada, a tarde inteira, na casa do viúvo solitário. Os familiares de
Roque e seus amigos, também, criticavam aquele relacionamento excessivamente
íntimo, de um homem com a sua idade e uma menina de 15 anos. Trinta anos os
separavam, enquanto afinidades e sentimentos aproximavam-nos cada vez mais.
O tal acontecimento
que precipitou tudo não foi um ato leviano da parte dele, nem um impulso
malicioso de iniciativa dela. Tua mente, caro leitor, tão acostumada a esses
escândalos do cotidiano, já deve estar dando tratos à bola, e imaginando um assédio
sexual de um velho tarado, ou um irresistível ato de sedução de uma ninfeta
desavergonhada. Nem uma coisa, nem outra.
De repente, no meio de
uma conversa, Lívia parou o que estava falando, olhou-o no fundo dos olhos, e
sussurrou: “Roque, sou eu, Lídia, eu mesma, a sua Lídia”.
Roque era católico
convicto, não acreditava nessas coisas de mediunidade, vidência e reencarnação.
Mas, as circunstâncias vinham obrigando-o a refletir como Lívia estava parecida
com Lídia. E foi no meio de uma dessas reflexões que ele se viu surpreendido
pela confissão de Lívia, ou de Lídia, ou quem quer que fosse.
Antes que ele se
recuperasse do golpe, Lívia assumiu por inteiro os gestos e até o timbre de voz
de Lídia, passando a relatar todos os acontecimentos que se sucederam após o
dia seguinte à sua morte.
Poucos ficaram sabendo
de um acidente de moto sofrido por Lívia, depois de ter velado o corpo de
Lídia, por toda a madrugada. A caminho de casa, com os olhos inchados e ainda
soluçando, ela não conseguiu desviar de um buraco, a moto derrapou e ela bateu
com a cabeça no chão. A morte foi instantânea. A alma de Lívia deixou o corpo, enquanto
a alma de Lídia tomou o seu lugar.
Roque ouvia tudo isso
em estado de choque.
Lídia alternava o
relato dos fatos, com alusões a segredos íntimos que só os dois tinham
conhecimento. Assim, ela procurava testemunhos fiéis de sua presença no corpo
de Lívia. As revelações não admitiam dúvidas, era ela, Roque já não tinha como
não acreditar.
Roque não se conteve,
abraçou-a chorando e contou-lhe o quanto tinha sofrido. Disse-lhe que se não
fosse a presença de Lívia, ele não teria resistido a tanto sofrimento.
Ela corrigiu-o,
declarando que nunca fora Lívia, que estivera ao seu lado, mas ela, o tempo
todo era ela que lhe fizera companhia. Ela se viu impedida de contar a verdade,
antes daquele momento. Mas, não sabia explicar o motivo dessa espera.
Roque pedia mais
detalhes, e ela reconheceu que também não saberia dizer-lhe o motivo de ter
sido atraída para assumir o corpo de Lívia. Ela só tinha uma vaga recordação de
perceber um sorriso irônico nos lábios de Lívia, quando abandonou o corpo,
cedendo-lhe a vez.
A sensação que Lídia
tivera foi de haver recebido um tempo adicional de vida, para poder contar-lhe
essas experiências misteriosas, e mudar suas crenças sobre a vida após a morte.
Lívia e ela eram como irmãs, e suas almas, talvez, tivessem firmado um pacto antes
de reencarnar, envolvendo essa missão.
Quando assumiu o corpo
de Lívia, ela ouviu uma voz que lhe dizia ter 100 dias para o cumprimento dessa
tarefa. “Esse será o tempo que irás dispor, para convencer Roque a acreditar
nos mistérios que envolvem a existência de um Deus verdadeiro, bem diferente de
tudo que ele imagina”. A voz continuou a lhe falar: “Irás ensiná-lo a crer num
conceito de divindade, em que
Deus está presente em todas as criaturas humanas, mas bem
distante de ter uma imagem semelhante à dos homens.” E a voz concluiu: “Ensina-o
a crer na jornada da alma, que deve encarnar em corpos físicos, por sucessivas
vidas, até atingir a perfeição. Quando ele, enfim, confessar sua crença nas
tuas revelações, então, tu estarás livre para morrer, e ele para viver”.
Muito difícil,toda estória de reencarnação!
ResponderExcluirSe envolver e compeender..."Deus bem distante da semelhança com os homens",ouço isso o tempo
todo:"Que somos imagem e semelhança de Deus".
Abraços!
Minha querida Andréa:
ResponderExcluirSomos, sem dúvida, imagem e semelhança de Deus. Por isso, não teria nenhum sentido, imaginá-lo num céu distante, onde não se pode alcançá-lo.
Imagem e semelhança, mas não humano como nós, e sim em energia pura. Somos energia, e não matéria. Aliás, matéria como se imagina não existe, tudo é energia.
Um abraço.
Gilberto.
A cadeia alimentar é um exemplo disso,matéria é pura energia,entendi.
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